quinta-feira, 6 de maio de 2010

O Aplicador de Violência


A modernidade se costitui historicamente através de um constante aprofundamento das relações sociais como relações de violência. Assim, o grau de importância que as instituições modernas tem na gerência da crise da modernidade, ao assegurar sua tautologia irracional, tem relação direta com a violência, a opressão, que aplicam. A figura do patrão, o estado, a polícia, o exército, além de caracterizarem-se simbolicamente necessariamente com projetores de temerosidade, constroem um discurso próprio, uma forma de subjetivação do papel que têm na aplicação da violência, violência que toma o corpo destas figuras e assume suas línguas, suas cabeças. Destas formas particulares dos aplicadores da violência observadas pelo homem moderno cotidianamente, surgem certas formas de personificação socialmente constituídas, que se autonomizam dos homens, e se constroem como parte da personalidade das instituições. Quanto maior violência esta aplica maior será aquela projeção de temerosidade, tanto maior será a autonomização de uma forma de padrão de subjetividade da objetivação que se coloca a quem assume o papel de aplicador de violência.
Assim como o nível de reprodução do capital foge a capacidade de compreensão individual, também o nível de violência disponível supera qualquer capacidade de figuração na mente do homem moderno. Porém, quando de alguma forma, mesmo aquele aplicador de violência desconstituído de sua alma vê ou entrevê a violência aplicada, pós-fordista, com capacidade de dizimação semelhante à capacidade produtiva da indústria contemporânea,se imprime nele uma visão do horror, uma marca tão profunda que o discurso da instituição e a ideologia nacional não mais dão conta de cicatrizar. Tão vasto é seu poder de destruição, tão grande é a distância que o aplicador está de sua vítima, tão pouco trabalho necessita ele para realizar sua devastação; porém toda essa desconstituição de si mesmo do papel que realiza, pode aparecer a ele de uma só vez e produzir um choque tão violento quanto é a sua posição na sociedade moderna. Pode aparecer como uma visão de sua devastação, de situações traumáticas vividas em seu cotidiano de trabalho, mas as formas de subjetivação de sua inserção dentro da sociedade produtora de mercadorias, que o ajudam a remediar estas situações traumáticas que fazem parte de seu cotidiano de trabalho (o nacionalismo, um senso de superioridade racial, a ideologia da liberdade burguesa...), neste momento de crise profunda não conseguem mais repor este dilaceramento interno vivido pelo aplicador de violência.
Em fevereiro, saiu na Folha um texto do Contardo Calligaris, (que pode ser lido na íntegra no seu blog, http://contardocalligaris.blogspot.com/2010/02/injecao-do-dia-depois.html ). Ele conta de uma pesquisa realizada na Inglaterra que mostra que os militares que foram à guerra do Iraque e que sofreram situações traumáticas, que recebem rapidamente morfina por via intravenosa tendem a sofrer menos de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). “Só para explicar, sofrer de TEPT significa, meses e anos depois do evento traumático, ser invadido por lembranças e pesadelos recorrentes que forçam a revivê-lo, perder-se em "flashbacks" que podem durar horas, sofrer psicológica e fisiologicamente quando se esbarra em algo que evoque um aspecto qualquer do evento, estar constantemente numa hipervigilância assustadiça e por aí vai. Quem sofre de TEPT tenta evitar estímulos associados ao trauma, a ponto de se tornar, às vezes, amnésico e, geralmente, de preferir um isolamento apático ao comércio com outras pessoas. Ora, a pesquisa selecionou 696 militares feridos em combate no Iraque, para os quais eram disponíveis dados médicos detalhados. Até dois anos depois do ferimento, mais ou menos um terço tinha desenvolvido um transtorno de estresse pós-traumático. Comparando o tratamento desse terço com o dos dois terços que não apresentaram TEPT, foi possível concluir que o uso de morfina no tratamento imediato de uma ferida reduz o risco de que, mais tarde, o paciente desenvolva um transtorno de estresse pós-traumático.”

Sem o interesse de discutir o tratamento que o colunista dá ao assunto, cabe antes constatar a preocupação dos órgãos de ciência em tratar do mal que assola os aplicadores de violência. Os aplicadores de violência de ponta, estes trabalhadores extremamente especializados no manuseio das máquinas de destruição, são muito caros para poderem ser descartados por uma tormenta mental. O uso da morfina retira o peso daquela experiência traumática, permite, como que apagando a memória emocional, que o aplicador de violência continue sua vida sem entrar em pane. Neste momento de crise profunda da modernidade, as intituições, para conseguir dar conta da gerência desta crise, precisam impor um nível de violência tão assombroso, que os homens mais preparados para sua execução não conseguem suportá-la sem a desconstituição de sua própria experiência de vida. O caráter objetivo dos homens modernos, cada vez mais se escancara, na mesma medida em que também distancia-se a capacidade destes perceberem que vivem para a vida da mercadoria.

8 comentários:

  1. Chico, existe TEPT por saudades dos primos?
    Abraços

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  2. "O caráter objetivo dos homens modernos, cada vez mais se escancara, na mesma medida em que também distancia-se a capacidade destes perceberem que vivem para a vida da mercadoria."

    Tenho reparado muito nisso.
    O discurso das propagandas, por exemplo, está cada vez mais explícito como se fosse cada vez mais flagrante a falta de capacidade de nos sensiblizarmos com qualquer sutileza e, mais do que isso, de não perceber a irracionalidade da qual somos objetos na nossa sobrevivencia.

    Muita treta...

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  3. O "aplicador de violência" rompe com os limites da instituição. O próprio espaço concreto, a forma física pode muito bem incorporar este sujeito.

    “Só para explicar, sofrer de TEPT significa, meses e anos depois do evento traumático, ser invadido por lembranças e pesadelos recorrentes que forçam a revivê-lo, perder-se em "flashbacks" que podem durar horas, sofrer psicológica e fisiologicamente quando se esbarra em algo que evoque um aspecto qualquer do evento, estar constantemente numa hipervigilância assustadiça e por aí vai..."

    A memória se torna veículo de evocação de sensações e sentimentos quando estimulada a tal. Estímulo este que pode vir através do espaço construído urbano. Não necessariamente direto, trauma ou episódio causado pela Forma, mas algo que remonte a catástrofes pessoais que se personificam na construção.
    É possível, e passível, ter medo de igrejas se já sofreu algum mal causado por um padre.

    Como acabamos com os "aplicadores de violência" quando o próprio homem o cria, o constroi e o é?

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  6. Olá!

    Achei o texto, um texto muito bom, o qual se propoe a discutir um dos aspectos fenomênicos no qual a modernidade se coloca. A violência não está apenas na forma pessoal, naquela em que o ferimento é visíve, mas também, nas formas mais "invisíveis" tomadas como práticas do cotidiano.

    Quanto ao comentrio do Luni, acho que no que diz respeito ao "aplicador de violência", nao se pode acabar com ele. O "aplicador de violência" nao é apenas o cara que aperta o gatilho, mas também aquele que defende o uso de leis mais severas, ou até mesmo o que passa indiferente ao ver um mendigo, alguém pedindo esmola. Ou seja, o "aplicador de violência" é uma das personas do moderno, cria das relaçoes do mesmo.

    Existe o fato também de que a liberdade que nos é colocada, a forma de ser de ser livre, anda de maos dadas com a forma violenta de sermos. E isso tudo só é possível graças a igualdade que temos de um para com o outro, de nós para com os próximos; "eu sou igual à você". O que é essa igualdade senao a juridica? Temos de nos ver como iguais para naturalizar a assombrosa e violenta desigualdade da nossa sociedade.

    Pra terminar, depois da conversa que tive com o Chico, autor do Post, ficou mais claro o que ele queria dizer. Acho que as contribuiçoes que as aulas de "Romantismo" tiveram um grande peso na reflexao do autor, mas as vezes, para quem nao teve acesso às aulas, nao fica tao clara algumas partes. Mesmo assim, é um texto que coloca uma um discussão impressindível nos dias de hoje.

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  7. Essa questão das formas (não só) urbanas legalizarem, justificarem e imporem a violência é bem interessante.

    Imposição e poder caminham juntas, acho que é algo social... A (re)produção do espaço urbano atual legitima isso, reproduzindo desigualdades, reproduz uma violência complexa, histórica, nas suas mais diretas e indiretas formas...

    Me lembrou bem 1984 o texto do chico... Legal.

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  8. Gustavo, o que você chama de "forma"? E nesse caso, o que seriam "formas urbanas" ?

    Se o sentido for o sentido de forma concreta, material, acredito que mais que a forma, seja a essencia do processo, a qual foi naturalizada e por isso, talvez, imperceptivel

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